
Poesias de Anna Akhmátova - Página 4

Anna Akhmátova (em russo e ucraniano: А́нна Ахма́това, Odessa, 23 de junho de 1889 —
Leningrado, 5 de março de 1966) pseudônimo de Anna Andreevna Gorenko), foi uma das mais importantes
poetisas acmeístas russas. Na generalidade, a sua obra é caracterizada pela aparente simplicidade e naturalidade
e pela precisão e clareza da sua escrita. Mais alguns detalhes na página 1.
(Resumido e adaptado da Wikipédia)
Índice
Resposta Tardia;
Requiem;
Dedicatória;
Introdução;
IV, V, VI;
VIII (Para a Morte);
IX;
Crucificação;
Epílogo.
Resposta Tardia
Para M. I. Tsvetáieva
Diabinha de brancas mãos… zombas,
Duplo invisível, te escondes nas sombras
Dos arbustos, nas casinhas de estorninho,
Entre cruzes depredadas tu caminhas
E gritas, da torre Marinka:
“Hoje volto aos campos meus.
Me admirem, conterrâneos,
Pelo que me aconteceu.
Minha família foi tragada pelo pântano
E a casa de meu pai cai em ruínas”.
Vamos hoje atrás de ti, Marina,
Em procissão à meia-noite pelas ruas
De Moscou, e a seguir a trilha tua
Vão milhões retinir fúnebre sino,
A nevasca com seu grito nos trespassa
Mas, discreta, apagando nossos passos
Ao dobrarmos a esquina.
Março 1940.
Réquiem
Em lugar de um prefácio.
Nos anos desgraçados da iejóvtchina eu passei dezessete meses nas filas da prisão em
Leningrado. Certa vez alguém me “identificou”. Então atrás de mim uma mulher de
lábios azuis e que, é claro, nunca na vida ouviu falar meu nome, despertou do torpor,
peculiar a todas nós, e me perguntou ao pé do ouvido (lá só aos sussurros se falava):
— E isso, és tu capaz de descrever?
E eu disse:
— Sou.
Então algo semelhante a um sorriso passou por aquilo, que algum dia foi seu rosto.
1º de abril 1957, Leningrado.
Dedicatória
De tanta mágoa, as montanhas se recolham
E as águas não mais fluam pelo rio.
Tudo estremece sob a dureza do ferrolho
E, atrás dele, os confinados no covil.
E, aos portões da prisão, dores de morte…
Para quem sopra o vento suave,
O pôr do sol a quem conforta,
Não sabemos; para nós o som das chaves
A ranger por entre abomináveis portas
E os ecos dos soldados com o seu bater de botas.
Cedo levantávamos, como para a missa,
Andávamos na capital hostil,
Nos encontrávamos, mortiças,
Ainda mal nascido o sol, adormecido o rio,
Mas o fio de uma esperança ainda em mente.
A sentença… Lágrimas jorram, de repente.
A vida, com as dores do calvário,
Extraída de nós todas do arrombado coração,
No chão de costas derrubada brutalmente…
Mas soergue, atordoada, e segue… solitária.
Por onde andarão as companheiras forçadas
Dos dois anos que passamos no inferno?
Que intempérie na Sibéria elas enfrentam,
Que sinais elas enxergam numa lua maculada?
Eu a elas me prosterno, neste adeus ajoelhada.
Março, 1940.
Introdução
Isso aconteceu quando os cadáveres
Felizes, descansavam de bom grado.
Pendurada em seus cárceres, inútil balançava,
Como um peso morto, Leningrado.
E, no auge louco do tormento,
Como lacônicas canções de adeus,
Entre as filas destacadas dos detentos,
Camburões cantavam pneus.
Estrelas de morte à nossa volta
E a Rússia inocente em carne viva
Sob ensanguentadas botas
E o trote das locomotivas.
IV
Se tivessem te mostrado, à zombeteira
Dos amigos preferida
E alegre pecadora da Tsárskoe Seló,
O que seria de tua vida…
Que, o gelo a derreter sob a goteira
Do teu choro de dar dó,
Sob a Cruzes, tricentésima da fila,
Ficarias, tendo em mãos o pacotinho.
No pátio do presídio, um trêmulo pinheiro,
Sem ruído. Quantos são os prisioneiros
Cujas vidas nesta hora lá definham…
V
Faz dezessete meses que me arrasto,
Aos pés do teu carrasco me atiro
E grito, que tu voltes para casa, —
Tu, meu filho e meu martírio.
Tudo confundiu-se para sempre,
Não consigo mais fazer a distinção
De quem é bicho, quem é gente,
E quanto tempo até que venha a execução.
De pano a flor de não sei quando,
O som dos incensórios, os meus passos
De algum lugar à parte alguma
E, direto nos olhos me fitando,
De morte próxima me ameaça
Uma estrela de incomensurável lume.
VI
As semanas passam voando.
O que aconteceu, não entendo.
As noites brancas te observam,
Ainda agora em hora matutina,
A ti, no cárcere, filhote.
Com olhos ávidos de ave de rapina
Sobre tua alta cruz elas conversam
E sobre a morte.
1939.
VIII
Para a Morte
Vens decerto, pouco importa — por que tardas?
Eu te aguardo — para mim tudo vai mal.
Deixei a porta entreaberta, a lâmpada apagada
Para ti, tão simples, tão original.
Assume para isso a forma que te agrada:
Com astúcia de ladrão, em casa adentra
Irrompendo como a seta envenenada,
Ou me sufoca com a tifo pestilenta.
Ou como a fábula, que a foste inventar
E que todos já se enojam de saber, —
Que eu veja a aba do boné da KGB
E do porteiro apavorado o pálido esgar.
A mim agora é indiferente. A Estrela Polar
Para mim pisca, o Ienissei Sibéria adentro
A escoar, e encoberto pelo derradeiro horror
O nele refletido olho azul do meu amor.
19 de agosto 1939, Casa Fontanka.
IX
A asa da loucura
Já a alma encobriu pela metade.
E bebe vinhos escarlates
Convidando-me a ir ao vale escuro.
Já compreendi que a ela devo
A vitória conceder.
Ouço o delírio nos meus nervos
Como a voz de um outro ser.
E coisa alguma ela permite
Que daqui leve comigo
(Por mais súplicas que eu grite
E com mais preces que a persiga)!
Nem do filho o seu terrível olho
Petrificado de dor,
Nem o dia em que me veio este terror,
Nem a hora que o encontrei sob ferrolhos,
Nem as mãos que apertei por entre grilhos,
Nem as sombras trêmulas das tílias,
Nem o fugitivo som, vôo de rola,
Da palavra de meu último consolo.
4 de março 1940, Casa Fontanka.
Crucificação
“Não chores por mim, Mãe,
No túmulo estou…”
1
O fogo, na abóbada celeste, se alastra.
O coro dos arcanjos glorifica o grande fim.
Ele diz ao Pai: “Por que me abandonaste?”
E à Mãe: “Oh, não chores por mim…”
2
Madalena, a soluçar, se debatia.
O discípulo amado ali ficou petrificado.
De erguer a vista ninguém teve a ousadia
Para a Mãe, que se segurou calada.
Epílogo
I
Agora sei como amortiza-se o aspecto da gente:
A este pêsame as bochechas se conformam,
Sob as pálpebras espia o sofrimento
Duras páginas de escrita cuneiforme.
Agora sei como os cabelos já se tornam,
De castanho ou negro, argênteos.
Como nos lábios submissos uma droga
De sorriso, trêmulo de medo, se escava.
Não só por mim eu rogo,
Mas por todas que comigo lá estavam —
Ao frio de gelo expostas e ao tórrido verão
Aos pés do cego e vermelho paredão.
II
O dia de finados aproxima-se outra vez.
Eu vejo, ouço, sinto a cada uma de vocês:
Esta uma, que levá-la para fora era difícil;
Esta outra, que não mais pisou a terra natalícia;
E aquela que disse, com a cabeça que balouça:
“Como em casa, hoje chego ao calabouço”.
Quem me dera ter seus nomes em meus lábios,
Mas a lista me tomam, e em lugar algum se sabe.
Com palavras que as ouvi chorarem pelos cantos
Para elas eu teci um grande manto.
Lembrarei delas para sempre em toda parte
Mesmo que à frente outro flagelo me aguarde,
E se taparem minha boca tão aflita
Pela qual o povo solta o milionésimo dos gritos,
Peço então por meu espírito rogarem
Quando à hora dos meus ritos funerários.
E caso um dia nesta pátria se intente
Em minha honra levantar um monumento,
Eu consinto que assim me agraciem,
Mas somente se me erguerem a honraria
Não lá onde nasci, beirando a praia:
Já basta que a memória desse tempo se esvaia,
Ou junto ao tronco predileto no jardim do tzar,
Cuja sombra ainda hoje está por mim a procurar,
E sim aqui, onde passei trezentas horas de suplício
Sem que as trancas para mim eles abrissem.
Pois minha alma atormentada ainda teme
Esquecer dos camburões as sirenes,
Ou da porta abominável o estalido
E a velha que urrava, como bicho malferido.
A pingar da imóvel pálpebra de bronze
Uma lágrima de gelo derretido me response,
Ao longe arrulhe o pombo do presídio
E os barcos passem no Nievá sem dar ouvidos.
Março 1940, Casa Fontanka.
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