
Poesias de Mia Couto - Página 4

Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um escritor e biólogo moçambicano, nascido em Beira, em 5 de julho de 1955. Recebeu muitos prêmios literários.
Índice
Prematuros olhos;
Raiz de orvalho;
Sementeira;
Sotaque da terra;
Viagem.
Prematuros olhos
Muito antes de mim,
os meus olhos
andaram a despir o mundo.
O que era roupa
tombou num escuro abismo,
desolada ave sob chuva.
E não era roupa,
era alma de gente,
sonhos à procura do tempo.
Debruçado na margem,
a lavadeira sabe:
não é de roupa que cuida.
É o próprio rio que ela lava.
E no seu ventre,
onde a luz se ajoelha,
certa vez se desenroscou
a trança cega do Tempo.
Por isso, mãe,
os meus olhos são teus.
E eles não servem para ver.
Apenas para recordar.
O que antes de ser luz
foi palavra e corpo.
(Em "Vagas e lumes". Lisboa:
ditorial Caminho, 2014.)
Raiz de orvalho
Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram
Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as coisas de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno.
(Em "Raiz de orvalho e
outros poemas". Lisboa:
Editorial Caminho, 1999.)
Sementeira
O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira.
Com lâmina de enxada
a palavra fere o tempo:
decepa o cordão umbilical
do que pode ser um chão nascente.
No final da lavoura
o poeta não tem conta para fechar:
ele só possui
o que não se pode colher.
Afinal,
não era a palavra que lhe faltava.
Era a vida que ele, nele, desconhecia.
(Em "Tradutor de chuvas". Lisboa:
Editorial Caminho, 2011, p. 71.)
Sotaque da terra
Estas pedras
sonham ser casa
sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol.
(Em "Raiz de orvalho e
outros poemas". Lisboa:
Editorial Caminho, 1999.)
Viagem
O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre o céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
de minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma
Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos.
(Em "Raiz de orvalho e
outros poemas". Lisboa:
Editorial Caminho, 1999.)
Nota de Euro Oscar
Mantive o português de
Portugal, conforme os
textos originais e os
sítios consultados,
abaixo mencionados.
Fontes
Pesquisa, seleção, revisões e edições por Euro Oscar.
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