
Poesias de Mia Couto - Página 2

Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um escritor e biólogo moçambicano, nascido em Beira, em 5 de julho de 1955. Recebeu muitos prêmios literários. Sua obra literária é extensa e diversificada, incluindo poesia, contos, romance e crônicas, e é considerado como um dos escritores mais importantes de Moçambique. Seus trabalhos são publicados em mais de 22 países e traduzidos em alemão, francês, espanhol, catalão, inglês e italiano.
(Resumido e adaptado da Wikipédia)
Índice
Horário do fim;
Idade;
Lembrança alada;
Lições;
Mudança de idade;
No teu rosto;
Números;
O espelho.
Horário do fim
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento.
(Em "Raiz de orvalho e outros poemas".
Lisboa: Editorial Caminho, 1999.)
Idade
Mente o tempo:
a idade que tenho
só se mede por infinitos.
Pois eu não vivo por extenso.
Apenas fui a vida
em relampejo do incenso.
Quando me acendi
foi nas abreviaturas do imenso.
(Em “Vagas e lumes”. Lisboa:
Editorial Caminho, 2014.)
Lembrança alada
Em alguma vida fui ave.
Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.
E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.
Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.
Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.
Guardo a pluma
que resta dentro do peito
como um homem guarda o seu nome
no travesseiro do tempo.
Em alguma ave fui vida.
(Em "Idades cidades divindades".
Lisboa: Editorial Caminho, 2007.)
Lições
Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.
Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.
Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.
Trêmula, a haste
me pede
o adiar da noite.
Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.
Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.
Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?
(Em "Idades cidades divindades".
Lisboa: Editorial Caminho, 2007.)
Mudança de idade
Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.
(Em "Tradutor de chuvas". Lisboa:
Editorial Caminho, 2011.)
No teu rosto
competem mil madrugadas
Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas
A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego.
(Em "Raiz de orvalho e outros poemas".
Lisboa: Editorial Caminho, 1999.)
Números
Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.
Para um só Sol, quatro Luas.
Para a tua boca, todas as vidas.
Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.
Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.
(Em "Tradutor de chuvas". Lisboa:
Editorial Caminho, 2011.)
O espelho
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
(Em "Idades, cidades e divindades".
Lisboa: Editorial Caminho, 2007.)
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Nota de Euro Oscar
Mantive o português de
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abaixo mencionados.
Fontes
Pesquisa, seleção, revisões e edições por Euro Oscar.
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