
Poesias de Jorge Luis Borges - Página 5

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo (Buenos Aires, 24 de agosto de 1899 — Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. A progressiva cegueira de Borges ajudou-o a criar novos símbolos literários através da imaginação, já que "os poetas, como os cegos, podem ver no escuro."
Índice
Religio Medici, 1643;
Rubaiyat;
Sou;
Spinoza;
Susana Soca;
Texas;
Um Cego;
Um Leitor;
Xadrez - I;
Xadrez - II.
Religio Medici, 1643
Defende-me, Senhor. (O vocativo
Não implica Ninguém. É uma palavra
Do exercício que o desengano lavra
E escreve a tarde de temor que vivo.)
Defende-me de mim. Já o disseram
Montaigne e Browne e um espanhol que ignoro;
Algo me resta de todo esse ouro
Que meus olhos de sombra recolheram.
Defende-me, Senhor, do impaciente
Apetite de ser mármore e olvido;
Defende-me de ser o já vivido,
O que já fui irreparavelmente.
Não da espada cruel, da rubra lança,
Defende-me, somente da esperança.
(Em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”.
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.)
Rubaiyat
Em minha voz a métrica do persa
Torne a lembrar que o tempo é a diversa
Trama de sonhos ávidos que somos
E que o secreto Sonhador dispersa.
Torne a afirmar que o fogo é cinza e nada,
A carne é pó, o rio a extraviada
Imagem de tua vida e minha vida
Que lentamente nos é arrebatada.
Torne a afirmar que o árduo monumento
Que a arrogância constrói é como o vento
Que passou, e que à luz inconcebível
De Quem perdura, um século é um momento.
Torne a advertir que o rouxinol de ouro
Canto só uma vez no imorredouro
Céu sonoro da noite e que as estrelas
Avaras não esbanjam seu tesouro.
Torne a lua ao poema que tua mão
Escreve como torna ao temporão
Azul do teu jardim. A mesma lua
Desse jardim te há de buscar em vão.
Que sejam sob a luz de tuas ternas
Tardes humilde exemplo essas cisternas
Em cujo espelho de água se repetem
Umas poucas imagens sempiternas.
E que a lua do persa nos aporte os
Ouros dos seus crepúsculos sem portos
Novamente. Hoje é ontem. És os outros
Cujo rosto é só pó. Tu és os mortos.
Sou
Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.
(Em "A Rosa Profunda".
www.citador.pt/poemas/
sou-jorge-luis-borges)
Spinoza
As translúcidas mãos desse judeu
Em meio à sombra lavram os cristais.
É medo e frio a tarde que morreu
(E às tardes as tardes são iguais.)
Tanto as mãos como o espaço de jacinto
Que empalidece no confim do Gueto
Quase inexistem para o homem quieto
Que está sonhando um claro labirinto.
Nem o perturba a gloria, esse reflexo
Dos reflexos do sonho de outro espelho,
Nem o amor temeroso das donzelas.
Liberto da metáfora e do mito
Lavra um árduo cristal: o infinito
Mapa do Ser que é todas as estrelas.
(Em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”.
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.)
Susana Soca
Com lento amor fitava os dispersos
Coloridos da tarde. E se perdia
Com gosto na complexa melodia
Ou na curiosa existência dos versos.
Não o elementar vermelho mas
Os grises Fiaram seu destino delicado,
Apto a discernir e exercitado
Tanto na oscilação como em matizes.
Sem atrever-se a pisar este perplexo
Labirinto, observava, sorrateira,
As formas, o tumulto e a carreira,
Como aquela outra dama do espelho.
Deuses que moram para além do rogo
A abandonaram a esse tigre, o Fogo.
(https://www.escritas.org/
pt/jorge-luis-borges)
Texas
Aqui também. Aqui como no outro
Confim do continente, o infinito
Campo em que morre solitário o grito;
Aqui também o índio, o laço, o potro.
Aqui também o pássaro secreto
Que por sobre os estrépitos da história
Canta para uma tarde e sua memória;
Aqui também o místico alfabeto
Dos astros, que hoje ditam a meu cálamo
Nomes que o incessante labirinto
Dos dias não arrasta: São Jacinto
E essas outras Termópilas, o Álamo.
Aqui também essa desconhecida
E ansiosa e breve coisa que é a vida.
(Em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”.
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.)
Um Cego
Não sei qual é a cara que me mira
Quando olho minha cara em um espelho;
Em seu reflexo não sei quem é o velho
Que me olha com cansada e muda ira.
Lento na sombra, com a mão exploro
As invisíveis rugas. Eis que assoma
Um lampejo. Vislumbro a tua coma
Que hoje é cinza ou ainda é de ouro.
Repito que perdi unicamente
A aparência superficial das cousas.
O consolo é de Milton e é potente,
Mas penso nas palavras e nas rosas.
Penso que se pudesse ver-me a cara
Saberia quem sou na tarde rara.
(Em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”.
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.)
Um Leitor
Que outros se vangloriem das páginas que escreveram;
a mim, orgulham-me as que li.
Não terei sido um filólogo,
não terei investigado as declinações, os modos,
a laboriosa mutação das letras,
o de que se endurece em te,
a equivalência do ge e do ka,
mas ao longo dos meus anos professei
a paixão da linguagem.
As minhas noites estão cheias de Virgílio;
ter sabido e ter esquecido o latim
é uma posse, porque o esquecimento
é uma das formas da memória, a sua vaga cave,
a outra face secreta da moeda.
Quando nos meus olhos se apagaram
as vãs aparências queridas,
os rostos e a página,
dei-me ao estudo da linguagem de ferro
que usaram os meus ancestrais para cantar
espadas e solidões,
e agora, através de sete séculos,
desde a Última Thule,
chega-me a tua voz, Snorri Sturlson.
Diante do livro, o jovem impõe-se
uma disciplina rigorosa
e fá-lo atrás de um conhecimento rigoroso;
na minha idade, qualquer empresa é uma aventura
que confina com a noite.
Não acabarei de decifrar as antigas línguas do Norte,
não mergulharei as mãos ansiosas no outro Sigurd;
a tarefa que empreendo é ilimitada
e há-de acompanhar-me até ao fim,
não menos misteriosa do que o universo
e do que eu, o aprendiz.
Xadrez
I
Em seu grave rincão, dois jogadores
Regem peças, sem pausa. O tabuleiro
Os prende até a aurora no certeiro
Âmbito em que se odeiam duas cores.
Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, audaz rainha, rei guerreiro,
Bispo oblíquo e peões ameaçadores.
Quando os rivais já se tiverem ido,
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.
O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.
II
Tênue rei, bispo em viés, encarniçada
Rainha, torre à frente e peão alerta
No branco e negro de uma estrada incerta
Buscam e travam a batalha armada.
Não sabem que da mão predestinada
Do jogador depende o seu destino,
Nem sabem que um rigor adamantino
Sujeita-lhes o arbítrio e a jornada.
Também o jogador é prisioneiro
(Segundo Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.
Deus move o jogador, e este, a peça.
Que Deus atrás de Deus a trama começa
De pó e tempo e sonho e agonias?
(Em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”.
Traduções de Augusto de Campos.
São Paulo: Terracota, 2013.)
Fonte Principal
(E as outras fontes precitadas)
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