
Poesias de Eugênio de Andrade - Página 3

Eugénio de Andrade, pseudônimo de José Fontinhas, poeta português. Nasceu em Póvoa de Atalaia, em 19. 01. 1923, faleceu em Passeio Alegre, na Foz do Douro, em 13 de junho de 2005. Mudou-se para Lisboa aos dez anos devido à separação dos seus pais. Frequentou o Liceu Passos Manuel e a Escola Técnica Machado de Castro, tendo escrito os seus primeiros poemas em 1936. Em 1938, aos 15 anos, enviou alguns desses poemas a António Botto que, gostando do que leu, o quis conhecer, encorajando-lhe a veia literária.
Índice
Em Lisboa com Cesário Verde;
É Assim, a Música;
Espera;
Há Dias;
Introdução ao Canto;
Língua dos Versos;
Madrigal;
Música Mirabilis;
Na Luz a Prumo;
Nada.
Em Lisboa com Cesário Verde
Nesta cidade, onde agora me sinto
mais estrangeiro do que um gato persa;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também;
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.
(Do livro "Os Sulcos da
Sede (2001)"/em "Poesia".
[Posfácio de Arnaldo
Saraiva]. 2ª ed., revista
e acrescentada Porto:
Fundação Eugénio de Andrade,
2005, p. 249-250.)
É Assim, a Música
A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
- sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.
(Em "Os Lugares do Lume". 1998.)
Espera
Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
(Em “Corpo de Amor”.
Sintra: Colares Editora,
1992.)
Há Dias
Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo nos cai
em cima. Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença da graça,
ou da alegria.
Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.
(Em "Os Lugares do Lume". 1998.)
Introdução ao Canto
Ergue-te de mim,
substância pura do meu canto.
Luz terrestre, fragância.
Ergue-te, jasmim.
Ergue-te, e aquece
a cal e a pedra,
as mãos e a alma.
Inunda, reina, amanhece.
Ao menos tu sê ave,
primavera excessiva.
Ergue-te de mim:
canta, delira, arde.
Em "Coração do Dia". 1958.
Língua dos Versos
Língua;
língua da fala;
língua recebida lábio
a lábio; beijo
ou sílaba;
clara, leve, limpa;
língua
da água, da terra, da cal;
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.
(Em "Rente ao Dizer". 1992.)
Madrigal
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
(Em "As Mãos e os Frutos. 1948.)
Música Mirabilis
Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo
– e desperte o lume.
(Em "Mar de Setembro". 1961.)
Na Luz a Prumo
Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
da água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.
(Em "Os Sulcos da Sede". 2001.)
Nada
Nada, nem sequer o verão
está completo. Menos ainda o colar
de sílabas que, desvelado,
te ponho à roda da cintura.
Nunca me pediste mais, nunca
te dei outra coisa.
Quando juntamos as mãos esquecemos
que somos culpados da nossa inocência.
E sorrimos, alheios
ao sol que declina, à estrela
do norte que sabemos no fim.
O privilégio da vida é este
silêncio musical que do teu olhar
cai nos meus olhos
e regressa a ti acrescentado
pela luz da manhã varrendo o mar.
(Em "Sal da Língua". 1995.)
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