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Poesias de Eugênio de Andrade - Página 1


Eugênio de Andrade

Eugénio de Andrade - pseudônimo de José Fontinhas - foi um poeta português. Nasceu em Póvoa de Atalaia (19. 01. 1923), uma aldeia da Beira Baixa onde passou a infância. Em 1943, Eugénio de Andrade instala-se na cidade de Coimbra. Fixa residência no Porto em 1950. Em 1956 morre a mãe, figura central na sua poesia, em cuja memória publica, dois anos depois, o livro Coração do Dia.

Sagrou-se à poesia como uma espécie de monge que vê no poema a via da redenção. Afabilidade e rudeza, ascetismo e hedonismo nele coabitam sem qualquer espécie de tensão. O encanto desta poesia capaz de suscitar uma emoção tão viva provém em grande medida da extraordinária harmonia (“aliança primogénita entre a palavra e a música”) encontrada no corpo do poema.

Em 1994, deixa a exígua morada na Rua Duque de Palmela, onde viveu durante décadas, e passa a viver numa casa, apoiada pela Câmara do Porto, onde funciona uma Fundação com o seu nome. Nesta casa, no Passeio Alegre, na Foz do Douro, faleceu em 13 de junho de 2005.



Índice

A Figueira;
A Ilha;
A Música;
A Pedra;
Adágio;
Antes de Saber;
Aos Jacarandás de Lisboa;
Apenas um Corpo;
Arrepio na Tarde.


A Figueira

Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
-me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde de Agosto
apenas me roçava, e partia.

(Em "Poesia". [Posfácio de
Arnaldo Saraiva]. 2ª ed.,
revista e acrescentada.
Porto: Fundação Eugénio
de Andrade, 2005, p. 559.)


A Ilha

Tanta palavra para chegar a ti,
tanta palavra,
sem nenhuma alcançar
entre as ruínas
do delírio a ilha,
sempre mudando
de forma, de lugar, estremecida
chama, preguiçosa
vaga fugidia
do mar de Ulisses cor de vinho.

(Em "O Ofício de Paciência". 1994.)


A Música

Álamos —
música
de matutina cal.
Doces vogais
de sombra e água
num verão de fulvos
lentos animais.
Calhandra matinal
no ar
feliz de junho.
Acidulada
música de cardos.
Música do fogo
em redor dos lábios.
Desatada
à roda da cintura.
Entre as pernas,
junta.
Música
das primeiras chuvas
sobre o feno.
Só aroma.
Abelha de água.
Regaço
onde o lume breve
de uma romã brilha.
Música, levai-me:
Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?

(Em "Obscuro Domínio", 1972.)


A Pedra

A pedra. Sou-lhe fiel pelo aroma.
Vim de longe para tocar o fogo
da sua geometria sem fronteiras.
Pedra viva. Ou melhor: acariciada.
Pedra profunda, chamada pelo sol,
num voo sem fim, sempre parada.

(Em "Pequeno Formato". 1997.)


Adágio

O Outono é isto –
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria
e sem sentido.

(Em "Primeiros Poemas". 1977.)


Antes de Saber

Até onde os dedos tocam o quente
do barro a mão sabe
antes de saber.
É um saber mais vivo, um saber
de ave: águia cegonha falcão,
animais quase no fim
como o lume destes dias.
Testemunhar a favor do lince
é nossa obrigação.
Por ser azul.

(Em "Ofício de Paciência". 1994.)


Aos Jacarandás de Lisboa

São eles que anunciam o verão.
Não sei doutra glória, doutro
paraíso: à sua entrada os jacarandás
estão em flor, um de cada lado.
E um sorriso, tranquila morada,
à minha espera.
O espaço a toda a roda
multiplica os seus espelhos, abre
varandas para o mar.
É como nos sonhos mais pueris:
posso voar quase rente
às nuvens altas — irmão dos pássaros —,
perder-me no ar.

(Do livro "Os Sulcos da Sede"
(2001), em "Poesia".
[Posfácio de Arnaldo Saraiva].
2ª ed., revista e acrescentada.
Porto: Fundação Eugénio de
Andrade, 2005, p. 582.)


Apenas um Corpo

Respira. Um corpo horizontal,
tangível, respira.
Um corpo nu, divino,
respira, ondula, infatigável.

Amorosamente toco o que resta dos deuses.
As mãos seguem a inclinação
do peito e tremem,
pesadas de desejo.

Um rio interior aguarda.
Aguarda um relâmpago,
um raio de sol,
outro corpo.

Se encosto o ouvido à sua nudez,
uma música sobe,
ergue-se do sangue,
prolonga outra música.

Um novo corpo nasce,
nasce dessa música que não cessa,
desse bosque rumoroso de luz,
debaixo do meu corpo desvelado.

(Em "Até Amanhã", 1956.)


Arrepio na Tarde

Não sei quem, nem em que lugar,
mas alguém me deve ter morrido.
Senti essa morte num arrepio da tarde.
Qualquer amigo, um dos vários
que não conheço e só a poesia
sustenta. Talvez a morte fosse
outra: um pequeno réptil
no sol súbito e quente de Março
esmagado por pancada certeira;
um cão atropelado por um bruto
que, ao volante, se julga um deus
de arrabalde, com sucesso garantido
junto de três ou quatro putas de turno.
Talvez a de uma estrela, porque também
elas morrem, também elas morrem.

(Em "Os Sulcos da Sede". 2001.)


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Fonte

Templo Cultural Delfos.
e Wikipédia (alguns dados biográficos).


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